14/07/2025 às 13h17 - Atualizado em 14/07/2025 às 13h17

Onde os livros acolhem: Biblioteca do Centro Pop oferece acesso livre à leitura para pessoas em situação de rua

Por Catarina Loiola, da Agência Brasília | Edição: Vinicius Nader

Há sonhos que só a leitura pode despertar. No caso de João Souza (nome fictício), 49 anos, os livros da biblioteca do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop) da 903 Sul trouxeram à tona uma vontade antiga: voltar a estudar. “Quando a gente começa a ler um livro, algumas frases entram na nossa mente e abrem nosso pensamento”, conta ele.

A Biblioteca Livro Livre é vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Social do Distrito Federal (Sedes) e completou dois anos neste ano. O funcionamento é diário, de segunda a segunda, e as obras são emprestadas sem prazo ou necessidade de cadastro. O acervo conta com mais de dois mil exemplares, incluindo títulos acadêmicos, religiosos e da literatura brasileira, como A Viagem, de Graciliano Ramos. São aceitas doações sem restrição de temas ou faixa etária.

 

O acervo da Biblioteca do Centro Pop conta com mais de dois mil exemplares, incluindo títulos acadêmicos, religiosos e da literatura brasileira | Fotos: Tony Oliveira/Agência Brasília

A titular de Desenvolvimento Social, Ana Paula Marra, ressalta a importância da iniciativa para a autonomia e autoestima dos assistidos pelo Centro Pop. “O processo de saída de uma pessoa em situação de rua passa pelas ações do Plano Distrital para População de Rua, mas também por uma atuação consistente da Sedes ao criar vínculos com essas pessoas e fortalecê-los”, afirma.

O espaço de acolhimento foi essencial para que João alcançasse seu objetivo. No ano passado, ele concluiu o Ensino para Jovens e Adultos (EJA) na Escola para Meninos e Meninas do Parque. “Fiz até o quarto ano, mas não terminei o ensino. Chegando a Brasília, conheci esse ponto de leitura e fui incentivado pelo pessoal a terminar o estudo. Hoje venho para ajudar a cuidar daqui, acho um lugar muito bacana”, relata.

Decorado com fotos de escritores - como Clarice Lispector -, cartazes e quadras, a biblioteca também é palco de encontros e oficinas. É na área externa do equipamento que o artista de rua Gilberto Rodrigues (nome fictício), 43, mostra aos colegas as técnicas da pintura manual. “É uma mistura perfeita. A biblioteca é arte, é cultura, é educação, é ética. E a cultura é para ser dividida”, observa ele, que cria obras de arte em azulejos.

História

Instalada dentro de um trailer, a iniciativa foi idealizada pelo servidor da Sedes, José Vicente Rodrigues da Silva, que tem estreita ligação com a leitura. Ele é pedagogo, mestre em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB) e, atualmente, cursa o doutorado na mesma área e instituição. A pesquisa analisa o impacto do acesso à leitura e da oferta de um espaço de conhecimento na autonomia de pessoas em situação de rua.

Entre os resultados já observados, destaca-se a influência positiva do ambiente literário na construção da autonomia e na retomada de projetos da população em situação de rua, como busca por emprego e conexão com familiares. “A população pensa que as pessoas em situação de rua não leem, mas temos bastante leitores, e o contato com os livros e com diferentes histórias ajudam muito”, diz o servidor.

 

José Vicente Rodrigues: "A população pensa que as pessoas em situação de rua não leem, mas temos bastante leitores, e o contato com os livros e com diferentes histórias ajuda muito"

Ele cita exemplos de gente como João, que se formou após o surgimento da biblioteca, e de pessoas que mantiveram o contato com os livros graças ao espaço disponibilizado. “Temos leitores que tiveram redução na pena prisional por leitura e dão continuidade aos estudos aqui. É um espaço de troca de experiência”, pontua. “São os nossos leitores, assistidos e assistidas do Centro Pop, que cuidam de tudo, trazem livros e pedem outros à comunidade; e, como o livro é livre, o pessoal pode pegar à vontade e continuamos com as prateleiras cheias”.

O tema da pesquisa de José Vicente também é de interesse da estudante de pedagogia Ana Caroline Sousa, 34. “Vejo esse projeto como uma ótima forma de viabilizar a educação e o processo pedagógico de uma forma democrática, chegando a todos os espaços da sociedade. É um espaço legal, tranquilo, bonito, com muita leitura”, disse ela, que aproveitou a visita para participar da oficina de pintura com Gilberto. “Foi uma honra e uma tarde de muito aprendizado, são coisas que vou levar para a vida”.

A biblioteca conta com as parcerias do projeto Mala do Livro, da Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec-DF), e com a Biblioteca Demonstrativa de Brasília. Também são aceitas doações de exemplares, independentemente do tema abordado.

Acolhimento

O Distrito Federal dispõe de dois centros Pop, localizados na 903 Sul (Plano Piloto) e na QNF 24 de Taguatinga. O serviço funciona das 7h às 18h, todos os dias da semana, sem necessidade de agendamento. É possível acessar espaços para guarda de pertences, higiene pessoal, alimentação (café da manhã, almoço e lanche) e ter acesso a emissão de documentos, além de atendimento socioassistencial com orientações sobre direitos, serviços, programas e benefícios socioassistenciais.